por Pilato Pereira
Clara e Francisco de Assis marcam a
história da humanidade como extraordinários referenciais de vida, especialmente
para os dias atuais, quando nos propomos a lutar pela superação violência e
construção sólida da paz.
São Francisco costumava saudar as pessoas com a
saudação de paz e sempre anunciava, pregava a paz (1Cel 23, 7). Tanto que hoje
temos o costume franciscano de saudarmo-nos uns aos outros com a saudação de
“Paz e Bem!”, que também é pronunciada em várias línguas, expressando a
universalidade do carisma franciscano (Pax et Bonum - Pace e Bene - Peace
andAllGood - Paix et Bien - Paz e Bem - Paz y Bien). A Regra de vida da Ordem
de São Francisco de Assis nos pede para sempre anunciar a paz (RB 3, 14). Mas
não só anunciá-la da boca para fora e sim sermos portadores da paz, ser
pacíficos (RB 3,12).
Francisco foi, sem dúvida, um construtor de relações
de paz. Foi um pregador da penitência e da paz, como diz Celano: “Em todas as
pregações, antes de propor aos ouvintes a palavra de Deus aos que estavam
reunidos, invocava a paz dizendo: ‘O Senhor te dê a paz’. Anunciava-a sempre a
homens e mulheres, aos que encontrava e aos que lhe iam ao encontro. Por esta
razão, muitos que tinham desprezado a paz, como também a salvação, pela
cooperação do Senhor abraçaram a paz de todo o coração, fazendo-se também eles
filhos da paz, desejosos da salvação eterna” (1Cel 23, 6-8). Celano também fala
dos primeiros seguidores, entre eles “Frei Bernardo, abraçando a legação -
missão - da paz correu alegremente a traz do santo de Deus” (1Cel 24, 2).
Santa Clara, da mesma forma que Francisco, também
tinha a paz como um valor em vida. Sempre procurava transmitir e comunicar
palavras de paz (cf.BnC 4). E desejava a paz para si mesma, porque queria
realmente ser portadora da paz. Pela oração cultivava a paz em sua alma (cf.
LSC 46). Olhando para o modo de vida assumido por Clara e Francisco, temos a
convicção que, para o carisma Francisclariano, a paz é fruto da justiça, do
amor e da integridade da criação.
A verdadeira superação da violência acontece na medida
em que vivemos uma vida de paz. Nos dias de hoje, a maioria das pessoas vive
preocupada com a realidade de violência que, no Brasil, é considerada uma verdadeira
epidemia. E as maiores vítimas são os jovens. Mais grave ainda é quando
constatamos que esta violência está entranhada em nossas relações, gerando uma
“cultura” da violência, do medo e da insegurança. Para superar esta violência
precisamos construir uma “cultura da paz”, através de relações mais amorosas e
solidárias em todos os ambientes em que convivemos.
A sociedade brasileira entrou no grupo das sociedades
mais violentas do mundo. Hoje, o país tem altíssimos índices de violência
urbana (violências praticadas nas ruas, como assaltos, sequestros, extermínios,
etc.); violência doméstica (praticadas no próprio lar); violência familiar e
violência contra a mulher, que, em geral, é praticada pelo marido, namorado e etc.
Precisamos descobrir onde está a raiz do problema.
E diante do clamor pela busca de solução, o governo
tem se precipitado muito e em geral vem usando ferramentas erradas e conceitos
errados na hora de entender o que é causa e o que é consequência. A violência
que mata e que destrói está muito mais para sintoma social do que doença
social. Deve ser trata a causa da doença e não a doença em si. E, pelo que se
tem constatado, não adianta apenas armar a segurança pública, lhes entregando
armas de guerra para repressão policial se a “doença” causadora não for
identificada e combatida na sua raiz.
Já é tempo de a sociedade brasileira se conscientizar
de que, violência não é ação. Violência é, na verdade, reação. O ser humano não
comete violência sem motivo. É verdade que algumas vezes as violências recaem
sob pessoas erradas, (pessoas inocentes que não cometeram as ações que
estimularam a violência). No entanto, as ações erradas existiram e alguém as
cometeu, caso contrário não haveria violência.
Em todas as partes do Mundo as principais causas da
violência são: o desrespeito, a prepotência, crises de raiva causadas por
fracassos e frustrações, crises mentais (loucura consequente de anomalias
patológicas que, em geral, são casos raros). Exceto nos casos de loucura, a
violência pode ser interpretada como uma tentativa de corrigir o que o diálogo
não foi capaz de resolver. A violência funciona como um último recurso que
tenta restabelecer o que é justo, segundo a ótica do agressor. Em geral, a
violência não tem um caráter meramente destrutivo. Na realidade, tem uma
motivação corretiva que tenta consertar o que o diálogo não foi capaz de
solucionar. Portanto, sempre que houver violência é porque, alguma coisa já
estava, anteriormente, errada. É essa “coisa errada”, a real causa, é que
precisa ser corrigida para diminuirmos, de fato, os diversos tipos de
violências. Em primeiro lugar a superação da violência está na promoção ou
melhoria do diálogo (Cf. DUTRA).
Quando o assunto é diálogo, temos um fato muito
significativo na vida de Francisco de Assis, que é seu encontro com o Sultão em
Damieta, Egito (cf. 1Cel 57; LP 37). Numa época de cruzadas dos cristãos contra
os sarracenos, chamados de “cães” e “depravados”, que ocupavam a Terra Santa,
Francisco assume postura de respeito e procura evitar combates. Acompanhado de
um confrade, foi ao encontro do sultão Malik-el-Khamil, de forma desarmada,
pacífica, com motivação evangélica, com humildade, como um enviado “do Deus
Altíssimo”. No início os dois foram agredidos, mas o sultão ficou impressionado
e acabou tratando-os com muita cortesia e afeição e até os convidando para que
permanecessem no seu acampamento. Podemos dizer que Francisco encontrou no
Sultão um “crente”, um irmão da fé no Deus único. O Sultão descobriu em
Francisco um homem cortês, fraterno, um irmão e não um inimigo. No mesmo
período (1219-1220), alguns seguidores de São Francisco vão ao Marrocos e em Marrakech,
se apresentando como enviados do papa e pregam contra Maomé e acabam sendo
mortos pelo próprio Sultão.
No caso de Francisco podemos dizer que, o que
aconteceu, foi o milagre do diálogo fraterno, do respeito, da cortesia e do
amor gratuito. É importante salientar que Francisco fez isso sem esconder sua
identidade cristã e, ao mesmo tempo, se deixou evangelizar pelo Sultão. Depois
voltou para Assis, a sua cidade, nutrindo profundo respeito pelos muçulmanos, inclusive,
inserindo na primeira regra as orientações de como ir entre os “infiéis” (Rnb
16). Em Marrakech, com os frades que vão e são mortos pelo Sultão, aconteceu o
embate, sem encontro com o outro, com o diferente. Mas no caso de Francisco, em
Damieta, ali aconteceu o encontro, o milagre da aproximação fraterna que o
livrou da morte (Cf. SCHWERZ).
Francisco e Clara estavam em comunhão com o doador da
paz, eles também vivem uma forte conexão entre contemplação e paz. Como destaca
Frei Nestor Inácio SCHWERZ, “no eremitério dos Carceri encontra-se uma
inscrição com a frase: ‘Ubi Deus ibi Pax’, (‘Onde está Deus, aí está a paz’)”.
Clara e Francisco cultivam a paz a partir do encontro com Deus. Clara é radical
na vivência e busca da paz. Ela, inclusive, propõe para a organização da sua
Ordem um método de exercício do poder serviço, tendo como pressuposto a paz. A
forma de como deveria acontecer a eleição e o oficio da abadessa era de se
primar pela unidade e pela paz. Era um acontecimento marcado pelo diálogo (cf.
RSC 4,22-24), que é eficaz na edificação da paz.
Clara e Francisco de Assis nos
ensinam que, através do
diálogo fraterno e no exercício da justiça, do amor e da integridade da
criação, é possível superar a violência e construir, de forma sólida, a paz que
sonhamos. Paz e Bem!
Referência bibliográfica:
DUTRA,
Valvim M. Causas da Violência no Brasil. Extraído do capítulo 9 do livro
Renasce Brasil.
Pilato
Pereira é noviço da
Terceira Ordem da Sociedade de São Francisco (TSSF) e presbítero na Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB); professor de Teologia e no magistério
público estadual (RS); Bacharel em Teologia pela ESTEF de Porto Alegre;
Licenciado em Filosofia pelo UNILASALLE de Canoas/RS; Pós-graduado em
Espiritualidade e Ecologia pelo ITF de Petrópolis/RJ; Mestre em Teologia
Sistemática pela PUCRS, com pesquisas nas áreas de Ecoteologia e Ecumenismo.
Autor do livro “O Irmão dos Pobres: Antônio Cechin, uma biografia”. Porto
Alegre: ESTEF, 2009. (www.pilatopereira.eco.br – pilatopereira@gmail.com)